Espaço Leitor
Hoje tenho o prazer de trazer mais um texto da Margarida Contreiras que já várias vezes nos enviou as suas opiniões sobre livros que vai lendo.
Autor: Gabriel García Márquez
Sinopse: Um livro para toda a vida.Prémio Nobel da Literatura 1982. A estória de amor vivida por Florentino Ariza e Firmina Daza é contada com toda magia do realismo fantástico de Gabriel. É um livro envolvente, que cativa o leitor do começo ao fim e que acaba torcendo pelo final feliz. As reflexoes sobre a vida, o amor e a morte, temas constantes em García Márquez, sao explorados de forma maestral neste livro. Um livro para toda vida!
Florentino e Firmina são os peões desta história de amor presumivelmente passada na Colômbia oitocentista e definitivamente em tempos de cólera.
A história começa com o remate final de uma declaração de amor que quebra a ação, rebobinando-a num flashback de cinquenta anos que vai progredindo até apanhar o momento inicial. Os amantes, quando jovens, são separados pela família, como manda a tradição, e, ao crescerem, pelo amor unidirecional. Surge um terceiro vértice, que cria o triângulo e toda a frustração de Florentino, que tenta, também ele, criar os seus vértices temporários e insatisfeitos. Firmina, indecisa e insegura, delicia-se numa ascensão social em pompa e circunstância que constantemente se sugere ser teatral ou efémera. Entretanto, o leitor vai tentando resolver se está a ler sobre o amor de Florentino por Firmina ou de Florentino e Firmina.
Há uma certa previsibilidade neste enredo convencional, o que não leva o leitor a abandonar o livro, mas, antes pelo contrário, dá-nos vontade de o querer saborear no presente sem a pressa de querer chegar ao fim. O seu sonante título concretiza-se apenas na primeira parte, já que este amor se passou em tempos de cólera como se poderia ter passado em tempos de qualquer outra epidemia. A cólera e os seus efeitos colaterais servem mais como referência cronológica do que como motor de ação ou impedimento de um caso amoroso, como poderia sugerir o nome do livro. No entanto, a cronologia tem pouco vulto para a história e pouco peso na narração, como atestam as escassas referências espácio-temporais. Com efeito, o espaço e o tempo são pouco explorados, o que dificulta o encaixe da história na encenação imaginária do leitor. Por outro lado, isso enfoca-o na problemática emocional do enredo.
Um dos temas abordados é a nostalgia, já que as emoções da personagem central estão constantemente condicionadas por locais, cheiros e cores do passado. O próprio livro reflete isso, ao ser composto por um grande flashback. Esta expressão nostálgica remete o leitor para um passado marcadamente remoto, marca dos velhos tempos empoeirados, reforçada pela escassez de diálogos, que nos dá a impressão de folhearmos um velho álbum de fotografias monocromáticas com olhares profundos.
Evidentemente, o grande tema desta história é o amor ou, mais especificamente, um caminho para o amor não correspondido mas eterno. O leitor sente a angústia de Florentino enquanto ser não amado, quase literalmente abandonado, e desespera por ele, desespera pela sua obsessão semelhante a uma doença em estado terminal interminável. Contudo, as expressões da personagem são muito mais impassíveis do que se poderia esperar, sendo precisamente as suas ações e as consequências delas que nos levam tantas vezes a sentir pena dele.
O compasso arrítmico da história parece um pouco desajustado. O autor não se apressa em desenvolver a narração pois, mesmo em alturas de maior suspense, como é a reta final da história, introduz um assunto que vem a propósito mas que não acrescenta nada ao enredo, dando-nos a sensação de estarmos a ouvir alguém apenas por boa educação como preço a pagar para ler um livro de qualidade. Por outro lado, em alguns assuntos de desfecho ou causadores de um ponto de viragem, demora-se tão pouco tempo que o leitor só lhes dá a importância devida nos acontecimentos futuros por eles causados ou não lhe dá importância nenhuma e não entende a origem de certas novas atitudes.
A história e a narração são realmente pouco cativantes mas a expressão escrita é tão apelativa que poderá, por vezes, desfocar o leitor do texto para o fazer constatar “que bela escolha de palavras!”. A escrita é incrivelmente íntegra e acessível, embora esteja longe de se considerar simples. Trata-se de uma espécie de linguagem popular projectada num nível erudito, que resulta num discurso que soa bem. Aliás, é a sua complexidade que o torna tão coeso. Contudo, é necessária alguma atenção aos pronomes para compreender se ainda estamos no sujeito ou no seu primo em segundo grau, arriscando-nos a ter que recuar constantemente algumas linhas para retomar a lógica do discurso.
A descrição crua da natureza humana, em particular no seu pendor sexual não tem romantismo nem pudor, o sexo é longamente descrito em todos os seus fetiches ou estranhezas que não glorificam a beleza humana mas, ao contrário, a ridicularizam. Não quer isto dizer que as acções do mundo íntimo sejam particularmente importantes na totalidade da história e a prova disso é que o autor conta com o mesmo detalhe o entusiasmante momento do primeiro encontro sexual de Firmina com o seu marido e a lista infindável de leques e plumas que ela trouxe da Europa. Curiosamente, ao contrário do que seria de esperar de todo este realismo, o amor nestas páginas de tempos de cólera, é um amor lavrado mais ao jeito do romantismo: único, arrebatador e perpétuo, mas nunca totalmente extenuante. As personagens não são realistas, apesar da crueza com que a realidade é representada: estas são personagens que recitam “versos de amor contra o vento, chorando de júbilo até amanhecer”.
A qualidade deste livro é indubitável. É claro desde o início que estamos perante um escritor com uma expressão escrita totalmente amadurecida e individualizada de quem domina a sua palavra em todos os ângulos. O enredo não é, contudo, o mais empolgante da história da literatura; são antes as suas personagens contrastantes em si mesmas que nos causam a curiosa emoção de simultaneamente nelas nos perdermos e encontrarmos. Este não é um livro para devoradores de livros inexperientes, é um livro para leitores atentos e pensadores. Não é um livro para apreciar unicamente a estória no seu encadeamento de acontecimentos, é um livro para saborear a escorrência da sua narrativa e a palavra de Gabriel Garcia Marques.
Muito obrigado à Margarida Contreiras por este fantástico texto.
Muito bom! Percebe-se que a leitora foi ao plano mais profundo da obra, ao íntimo das personagens, à reflexão sobre a linguagem crua e poética, em simultâneo. Bela crítica de uma leitora madura que não se permite ficar pela superfície da obra.
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