Autor: David Soares
Por vezes gosto de ler algo que seja realmente diferente. Algo que passe a linha que actualmente define a base dos romances, sejam eles fantasia, ficção, policiais, etc… e assim fugir um pouco à rotina. Desta vez tive nas minhas mãos este livro de um autor que não conhecia.
Batalha apresenta-se primeiro como um livro suave, com alguma filosofia e algumas questões onde o autor usa o mundo dos ratos como metáfora para o nosso próprio mundo, mostrando a insignificância de muitas coisas palpáveis, sendo por vezes muito mais significante aquilo que não se vê com os olhos. Confesso que nessas primeiras páginas julguei que estava a ler uma nova versão de “O Principezinho”. Foi uma sensação má? Não…
Quando cheguei perto da página cinquenta, mais coisa menos coisa, já David Soares me começava a presentear com alguma crueldade e as suas questões mudam para uma vertente mais negra, e nessa altura da leitura, ao reparar na introdução da “imagem” da não aceitação do estranho por parte de algumas personagens pouco importantes, julguei que estava a ler uma nova versão de “O Deus das Moscas”. Foi uma sensação má? Não…
Foi ligeiramente mais à frente que me apercebi que na realidade não estava a ler nenhuma nova versão do que quer que seja, pois efectivamente estava a ler algo novo, e isso agradou-me bastante. Com uma escrita, por vezes fácil, por vezes exaustiva, David Soares consegue dar uma autenticidade que nos prende ao livro. Com as suas questões e metáforas que por vezes nos embalam numa página, para na seguinte nos agredirem com novas perguntas, Soares dá-nos diálogos rápidos e de escrita fácil para de depois nos questionar com um português no qual por vezes me senti quase perdido, e foi esse o primeiro detalhe que realmente adorei. Soares com o seu português menos comum, que apenas usa quando descreve um sentimento, uma dúvida ou um pensamento, obriga-nos a diminuir o ritmo da leitura e a pensar e ao pensar percebemos a mensagem que se quer dar.
A história de Batalha, uma ratazana acolhida por um casal de ratos, tem várias faces, e cada uma delas oferece-nos uma mensagem diferente, e com ela a personagem evolui. Batalha não é mais do que qualquer criança educada por um pai crente, que acredita ver mais do que o que simplesmente está à vista. Batalha, feio, com um cheiro estranho e diferente em tudo o resto (tirando as orelhas) questiona o que possa ser superior. Afinal de contas ele é diferente, pode dar-se ao luxo de não acreditar, de ser revoltado! Para ele, o mundo, com toda a sua beleza e crueldade misturada, apenas é o que é. Nada mais do que isso. Soares dá enorme importância a essa forma da ratazana ver o mundo e consequente falta de esperança.
Mas tal como disse antes, o livro tem várias fases, e se numa somos brindados com crueldade, noutra dizem-nos que o mundo é muito mais do que isso, é o que fazemos dele. Afinal de contas, qualquer ser é bom ou mau, mas pode alterar-se perante certos acontecimentos. Batalha sente essa transformação muito directamente, dando à história uma imagem profundamente realista. Este livro é isso mesmo, optimismo e negativismo. Por vezes é-nos dado a ideia de que somos ingénuos quando não percebemos que uma coisa boa apenas está a disfarçar uma coisa má… e porque somos ingénuos? Porque queremos ser amados e recebemos de braços abertos tudo o que é bom. E não será essa a maior necessidade de todas?
Resumindo, foi um livro que me agradou. Fácil de ler quando era preciso, lento quando nos quer ensinar ou questionar sobre algo. Adorei o final, o que para mim é algo muito importante, foi uma verdadeira surpresa. David Soares consegue neste livro cativar-me a ler a sua restante obra literária, algo que não estava à espera. É um livro por vezes negro, por vezes quase conto de crianças, filosófico e com muitos momentos em que o mundo desta ratazana e do nosso próprio mundo se fundem.
É um livro bem conseguido, que voltarei a ler um dia e mesmo tendo certas partes que poderão não cativar uma ou outra pessoa, este foi indiscutivelmente o melhor livro de literatura portuguesa que li nos últimos meses. Recomendo-o sinceramente. Vale a pena ler.
Deixo aqui duas passagens do livro que gostei particularmente, pela sua simplicidade e mensagem.
“Quando fazemos coisas boas, disse a porca, nada nos pesa no peito. Nenhuma terra é demasiado dura, nenhuma distância é demasiado longínqua.”
“Talvez existam os pais do mundo, pensou. E nos tenham abandonado, porque nós lhes metemos nojo. Porque nos tornámos feios e maus e desmerecedores de afecto.”