Autor: Rute Simões Ribeiro
Sinopse: Os cidadãos do mundo inteiro são chamados a tomar uma decisão por uma entidade desconhecida. Têm de escolher um sentido apenas, «a saber», pode ler-se na misteriosa mensagem, «visão, audição, olfacto, tacto, paladar, com exclusão do apelidado sexto sentido, dado que, neste último caso, é o sentido que escolhe o portador, em caso algum podendo ocorrer o inverso». Receando o impacto da escolha livre na organização da sociedade, o governo decide obrigar os cidadãos eleitores a escolherem o sentido determinado em conselho de ministros, sob pena de penalização no rendimento, chamando as pessoas, em nome da nação, ao exercício de um dever colectivo de reorganização após a «extracção dos sentidos». Perante a ordem do governo, os partidos da oposição apresentam moções de censura e os auto-apelidados «guerrilheiros da liberdade» formam «brigadas dos sentidos», ainda que acabando estas por «forçar as pessoas a serem livres». Três personagens principais entrecruzam-se na história, um primeiro-ministro, um guerrilheiro da liberdade e uma mãe, partilhando, de algum modo, sentimentos de dever e de vigilância constante. Após a instituição de novos hábitos, ajustados à nova «ordem de sentidos», o primeiro-ministro depara-se com um inusitado e perturbador pedido do país vizinho, em nome de um antigo acordo a que está vinculado.
Finalista do prémio Leya, este livro, tal como podem ver pela sinopse, apresenta uma idea original e claramente nada fácil de implementar. Numa primeira fase a ideia base do livro pareceu-me boa, mas tive dúvidas se seria possível torná-la coerente.
Globalmente, este é um livro muito interessante. A autora apresenta uma escrita bem trabalhada e focada no essencial. Com alguns toques de Saramago, a autora surpreendeu-me pela forma como conta a história, desenvolvendo nos momentos certos e sendo capaz de perceber algumas dúvidas ou emoções que o leitor poderá ter em certos momentos.
No entanto, o foco está no enredo, complexo, diferente e difícil de gerir para que seja coerente. A autora consegue criar uma boa história, apoiada numa narrativa inteligente e quase sempre coerente. Existem alguns momentos forçados para que a narrativa caminhe num certo sentido, mas não mancham o enredo, principalmente porque algumas personagens estão muito bem criadas. O problema está na complexidade da ideia, que altera completamente a forma como vivemos, como vemos a vida e como interagimos com o mundo e com outros seres vivos. Perante tal mudança, torna-se óbvio que o livro, por melhor pensado e estruturado que esteja, dará sempre espaço ao leitor para questioanr ainda mais e encontrar falhas.
Mas, gostei da forma como a autora deu a volta a várias questões que poderiam ser uma armadilha. O resultado é um bom livro que levanta várias questões morais e sociais. É fácil, se questionarmos um pouco, perceber as ligações com a nossa realidade. Afinal do que temos abdicado nos últimos anos em troca de algo? Religião, política, redes sociais, internet... as ligações são claras. Para onde estamos a caminhar? Do que iremos abdicar a seguir? Quando iremos deixar para trás o que nos torna humanos simplesmente porque alguém assim decidiu? Como iremos aceitar tal imposição ou moda?
E é nestas perguntas indiretas que o livro se sustenta. Pelo menos foi a minha forma de o ler, enquanto retirava na minha mente o que agora é dado como adquirido, para questionar como seria se algo simples, mas obrigatório, me faltasse. Talvez a forma de sobrevivermos seja sempre uma manifestação de vontade.
Globamente apreciei este livro. Demorei a ficar agarrado à história mas a qualidade é inegável. Houve realmente alguns momentos que me pareceram forçados, principalmente na escolha das personagens, mas a mensagem forte do enredo supera esses problemas. Rute Ribeiro é, claramente, uma escritora que irei seguir no futuro.
Luís Pinto