Hoje o "Espaço Leitor" regressa após uma estreia muito boa com o texto sobre "Os Pilares da Terra", um excelente texto da Margarida Contreiras, que podem ver neste link.
O "Espaço Leitor" é um local onde qualquer leitor poderá deixar uma opinião a um livro à sua escolha. Hoje publico a opinião do escritor Carlos Reys, autor do livro Esmeralda Cor-de-Rosa, e aproveito para agradecer o seu contributo com este excelente texto!
Aproveito ainda para informar, que qualquer leitor que gostasse de ter uma opinião neste espaço, basta enviar um mail para lerycriticar@gmail.com com a sua opinião a um livro.
Espero que gostem desta opinião a este excelente livro, sobre o qual também já falei no blog.
Autor: Patrick Suskind
Título original: Das Perfum
Estamos perante uma obra de
ficção em que o autor nos descreve o percurso de uma figura rocambolesca,
fictícia, que aspira alcançar o Amor – ao qual não tem acesso senão após
concretizar o seu sonho – e quando o alcança, momentaneamente, acaba sendo
vítima dele.
Patrick Süskind conta-nos a
história de um homem rejeitado pela Natureza que, estranhamente, não o dotou de
cheiro próprio embora seja provido de um extraordinário olfacto – o que o leva a
tornar-se num génio perfumista durante a vida.
A acção da história começa
em Paris, no século XVIII, numa França pré – revolucionária onde se desenrola a
narrativa de um homem com duas características marcantes. Uma característica do
protagonista é a sua extraordinária capacidade de sentir qualquer cheiro,
enquanto a outra característica reside no facto de ele não exalar odor algum.
Esta dicotomia constitui, no desenvolvimento da história, um factor importante
para a revelação da personalidade de Grenouille.
Abandonado pela mãe, ele
cresceu entregue aos cuidados de várias amas, vivendo situações dramáticas até
chegar a Madame Guillard, uma mulher que vivia das pensões atribuídas aos órfãos,
procedendo à exploração das crianças e que manteve Grenouille até à idade de 8 anos.
Num ambiente de todo desagradável misturado com outros órfãos e enjeitados,
sofreu a indiferença destes, logo que se aperceberam do incómodo que lhes
causava a sua presença e a falta do seu odor, enquanto, simultaneamente, lhes
provocava medo.
Sobrevivendo a posteriores
doenças que lhe deixaram marcas físicas a juntar às marcas morais de uma
existência atribulada, Grenouille apercebe-se do seu isolamento e deambula pela
cidade de Paris absorvendo os cheiros de tudo e de todos, inventariando e
catalogando, mentalmente, uma inumerável quantidade de odores que lhe conferem
um largo conhecimento e experiência para o futuro.
O «magnífico» perfumista,
mas corrompido de carácter, percorre então as lojas aromáticas onde ganha experiência
na destilação de muitas essências aromáticas a fim de encontrar a fórmula ideal
para a confecção dos seus perfumes. Não lhe assiste a ideia de enriquecer mas
sim a ideia de seguir o seu estranho sonho; um sonho de loucura que era o de criar
um perfume que despertasse o mais profundo amor em quem o cheirasse. Um amor
que ele dedicou a si próprio apoderando-se do mundo da realidade que o
envolvia, através de uma forma de simulação dessa realidade.
Ele procura nas próprias
pessoas o odor de que necessita a partir do qual inicia as suas experiências e
é no odor de mulher, que ele capta, em donzelas virgens, que incide o seu
desejo, ao ponto praticar os crimes.
A personagem da história que
Patrick Süskind nos descreve, assenta, pela sua índole, entre dois pólos que podemos
interpretar como sendo o lado humano e o anti-humano. Humano enquanto ser
vivente, carente de amor, lutador contra o desprezo a que se sente votado pelo
seu semelhante; anti-humano quando, visto como um monstro, se nos apresenta
como insensível e criminoso.
A leitura da obra desperta,
assim, no leitor sentimentos vários desde a compaixão à admiração por
Grenouill, que o autor explora, descrevendo e estabelecendo, ao longo da
história, um curioso fio condutor, que leva a interpretar o comportamento do
personagem, numa ascensão de interesse cada vez maior, tentando desvendar os
«porquês» que frequentemente se colocam tanto no seu estranho comportamento
como no seu verdadeiro carácter.
Não é por acaso que o autor
descreve, pormenorizadamente, o primeiro crime e o ultimo. O período de tempo
que medeia o primeiro crime dos restantes, torna, naturalmente, o leitor mais
curioso, mais ansioso pelo desfecho da obra. O autor, aqui, ganha tempo e
aproveita-o na descrição de todo o esforço em que o personagem se empenha para
conseguir obter o milagroso perfume que irá constituir a sua enganadora
liberdade, o aroma mais sublime que fará com que os outros o amem.
O ritual a que procede
depois, (…) “com
alegria e serenidade” (…) junto das vítimas da sua louca ambição, constituem
marcas profundas de absoluta falta de sentimentos, de crueldade, de coragem
incontida, que acabam por o denunciar.
A obra de Patrick Süskind
contém um final inesperado para o leitor. Este, durante a leitura, dá-se conta
de uma ficção bem trabalhada com descrições da vida quotidiana de Paris do
século XVIII, onde impera a miséria em que a população vive, paralelamente à
vida faustosa da realeza. Repara na influência da Igreja junto do povo e na sua
atitude perante situações já então difíceis de resolver como as das crianças
abandonadas e órfãs, nas reacções do Poder instalado, que aqui são descritas
com pormenores reveladores de uma busca intensa, efectuada por quem se preocupa
com factos históricos.
Podemos considerar que, na
obra “O Perfume”, está presente uma forte simbologia associada ao protagonista
da história que, sendo dono de um olfacto invulgar, apto a perceber traços de
que nenhum animal seria capaz, acaba por apagar tudo o que é visual, visualizando
o mundo através do olfacto.
Desprovido de sentimentos
maternos, isolado e incompreendido, comete o primeiro de muitos outros crimes,
em busca da essência odorífica perfeita que só ele é capaz de conseguir.
Na obra estão presentes
cheiros, sabores, nuances e essências, símbolos da sua imaginação e loucura que
só ele sente, vê e prevê. O sentido premonitório é uma constante nas descrições
efectuadas pelo autor.
No universo de Grenouille
não existem coisas nem pessoas. Ele só consegue apoderar-se do mundo da
realidade que o cerca através de um simulacro da realidade – o perfume, o odor
que, de modo mágico, abre para ele as portas do real sem que ele seja obrigado a
conquistá-lo com amor.
Assassino de belas jovens,
deixando em pânico toda uma região (…) “Foi então que o medo se abateu sobre a cidade. As
pessoas já não sabiam contra quem dirigir a sua raiva impotente” (…) (pág.215) o perfumista, ao pretender fabricar,
artificialmente, o aroma da pureza e do amor, está simbolicamente a “vingar-se”
da falta de odor que ficou nele desde a infância, na adolescência, até à idade
adulta, o que motivou o desprezo a que se viu votado.
Nesta obra estão presentes,
constantemente, símbolos e significados relacionados com a busca da essência
perfeita, com a infância do protagonista, com o seu passado e com o seu futuro.
Conclusão
Ao ler o livro “O Perfume”
ficamos com a sensação de que se trata de uma obra de ficção onde o autor se
preocupou em prender a atenção constante do leitor, descrevendo as vivências
dos aglomerados populacionais muito densos na Europa do séc.XVIII em contraste
com a burguesia e o clero, ao mesmo tempo que nos descreve um personagem irreal
possuído de dons irreais que faz uso dessa particularidade para alcançar o
amor, que nunca sentiu, matando e não se inibindo de matar em beneficio da sua
aspiração.
A própria obra constitui uma
simbologia das fraquezas humanas, da solidão, do abandono, do desespero e
ambição, retratados ao longo da história pelas mais diversas personagens e
situações.
Criar um perfume capaz de
produzir o efeito do amor é uma utopia que persegue o protagonista e o conduz à
sua autodestruição.
«O feitiço virou-se contra o
feiticeiro»