Hoje regressamos ao Espaço Leitor para mais uma análise da Margarida Contreiras,
que decidiu escrever sobre um livro que me parece bastante
interessante. Fica aqui a sua opinião e acredito que um dia também irei
ler este livro, e, se possível, falar aqui sobre ele.
Autor: Richard Zimler
Título original:The last Kabbalist of Lisbon
O título sentencia um genocídio, desafiando-nos ao mesmo tempo a pensar quem terá sido o último cabalista de Lisboa. Bastará a leitura de algumas páginas para nos apercebermos de que o sujeito é precisamente aquele que, na primeira pessoa, nos conta esta história: Berequias Zarco – nome próprio e coletivo que representa simultaneamente um homem e um povo. Este livro traz à superfície do tempo as lembranças de vida de um cabalista que intencionalmente nos quer demonstrar a desgraçada vivência das minorias na Lisboa manuelina.
O livro é uma memória.
Com este romance, Richard Zimler compartilha uma lembrança perdida no bairro judeu da antiga Constantinopla e com ela transporta-nos à Lisboa quinhentista, preconceituosa, impiedosa e ignorante. Leva-nos à era dourada dos Descobrimentos, uma epopeia grandiosa o suficiente para nela caber novidade, exotismo, riqueza e extravagância concomitantes e contrastantes com doença, sangue, seca e fumo. Percorremos mais um capítulo da fatídica história do povo judeu, desta vez, conduzidos por um seu congénere que nos convida a visitar o seu próprio trajeto de onde avistamos um holocausto tardo-medieval, capaz de provocar uma espécie de vergonha ancestral até mesmo na bem-aventurada identidade coletiva do povo de Camões.
O elenco enriquece a narração. As personagens conseguem representar simultaneamente valores e faltas, como se cada uma delas ali estivesse para assegurar a predominância do bem e do mal mas recordando-nos constantemente a nossa condição falível de humanos. O protagonista Berequias é a bravura e a força, embora a sua fé seja instável. A personagem que gera a intriga é também a que está mais ausente: mestre Abraão, que cultiva o exemplo da espiritualidade, fraternidade e do bom senso, mas que peca também pela ingenuidade. Por fim, Farid, o mouro que segue todos os passos do protagonista, encarna a lealdade, o amor e o altruísmo.
A obra cativa o leitor muito para além do choque do sadismo criativo, tão comum na abordagem deste argumento. O entusiasmo da própria história é constantemente avivado com laivos de suspense, perseguição e fuga de índole policial, tornando-a num romance multifacetado que faz correr página após página na expectativa do desfecho. É também a limpidez da narração e a entrega da informação ao leitor de forma íntegra, lúcida e verdadeira que nos permite tomar consciência de um realismo inquestionável. A linha do tempo segue a lógica cronológica, salvo pequenos apontamentos de flashback, pelo que o leitor acompanha a história a um ritmo compassado, tornando a leitura agradável e interessante. O rigor histórico projeta-nos violentamente cinco séculos para trás até uma realidade crua, onde também travamos conhecimento com pequenos e grandes recantos da nossa capital varridos pelo grande tremor de terra setecentista. As linhas frias da narração permitem-nos alcançar a assolação do poder opressivo, levando-nos às mais recônditas camadas psicológicas deste povo ferido que, com um novo nome, vestia uma mentira desestabilizadora da sua própria fé. Nesta história, que devemos considerar História, jazem os padecentes da Inquisição. Jazem as suas histórias silenciosas, as suas forças desgastadas e o seu fim ignoto.
Afinal, quem foram os últimos cabalistas de Lisboa? Onde foi – onde está – a gente judia que dobrou as esquinas de Alfama? Que as abandonou? Que nelas pereceu? E acima de tudo, que nelas morou? A judiaria perdeu-se nas fogueiras da Inquisição e do terramoto. O povo desapareceu: mudou de nome, de residência ou de dimensão.
O último cabalista de Lisboa tem um nome – um nome próprio – e esta é a sua história. Consideremo-la também a história de todos os nomes sem nome, distantes o suficiente ou desfigurados o suficiente para nunca mais os alcançarmos.
Opinião feita pela leitora Margarida Contreiras