Autor: David Soares
Nota: peço desculpa pelo tamanho deste texto, mas falar sobre um livro com três contos não é fácil em poucas palavras.
Talvez algum observador vigiasse a marcha do mundo, impedindo que ele desaparecesse.
Há poucos meses David Soares era um desconhecido para mim, nunca lera nada seu, mas houve qualquer coisa no seu livro Batalha que me fez agarrá-lo. Talvez tenha sido a capa, ou a ideia base… li-o sem qualquer expectativa, limitei-me a ler. Batalha foi a mais agradável surpresa deste ano até agora. Apareceu como um livro estranho e acabou como um livro que recomendo, muito! Sendo assim seria inevitável voltar a este escritor que tanto me agradou, mas qual seria o livro próximo a ler? Acabei por escolher este, um pequeno livro de contos, três, que escolhi por um simples aspecto: as páginas negras com as letras a branco. Nunca li um livro assim e tal pormenor agradou-me enquanto me senti rapidamente enquadrado com o ambiente do livro. O horror…
Sendo um livro de contos independentes, o primeiro é o mais curto, de longe o mais soft, e também aquele que mais me viciou, não só pelos seus diálogos mas também por ser uma história que tentava mostrar bases científicas que me agradaram e um casal de personagens, onde um é médium e o outro invisível, que me pareceram encaixar bem. Existia uma solidão inerente, uma necessidade de afecto que apreciei. Mas confesso que o fim deste conto me deixou com uma mistura de sabores, por não ser o que esperava, apesar de sentir uma mensagem intrínseca que me agradou.
No segundo conto o horror apresenta-se mais explícito, com um ritmo mais rápido, muito mais negro, quase angustiante em certos momentos. Trata-se da história de três antigos ex-combatentes, os seus traumas e o que farão para fugir do medo dos fantasmas que os perseguem. Gostei bastante do tema. Nós somos, sem dúvida, o resultado do que vivemos, do que sentimos, do que nos rodeia. Um efeito borboleta de todas as acções, todas as situações desde que nascemos, moldando-nos constantemente. Umas situações marcarão mais que outras. A guerra tocará obrigatoriamente no extremo das situações marcantes, e isso está muito bem vincado neste conto.
O terceiro conto é para mim o melhor, contando a história do Rei Assobio, um velho com uma infância traumatizante que o leva a uma “caça” que acabará num final surpreendente. É para mim o melhor conto pois tem toda a lógica necessária para ser bem sustentado e apresenta-se como o conto onde a personagem principal é melhor construída, levando-nos a perceber o porquê. David Soares apresenta também aqui uma boa capacidade para “entrar” na mente das crianças (suas personagens), quer nas suas acções, quer nos diálogos.E no fim cada pormenor conta.
Em cada conto existe uma ou mais mensagens, e muito sobre qual reflectirmos. Cada pessoa irá certamente encontrar a sua própria mensagem, significados diferentes, sensações distintas, e nesse aspecto David Soares dá-nos liberdade. Já graficamente tal liberdade não existe, pois Soares descreve com pormenor e qualidade aquilo que devemos ver, sendo a sua visão do horror, não o nosso. Tais descrições serão certamente demasiado fortes para alguns, mas também a realidade o é, como tal a sua escrita firme e directa no que devemos ver na nossa mente está muito bem conseguida. No entanto devo dizer que David Soares tem a capacidade, que me agrada, de não chegar ao ridículo que outros autores atingem ao tentarem criar a sensação de horror. Neste livro o horror é promovido com a lógica retirada do contexto da história em si, e para mim é algo que faz a diferença. Não existe o absurdo descontextualizado.
Com as suas páginas pretas, A Luz Miserável dá-nos aquela sensação que vemos nos filmes onde está sempre a chover, algo está mal, mas Soares não promove o suspense, promove antes o horror, aquela sensação que nos percorre o corpo no exacto instante em que o horror ocorre, sem nada que nos prepare para tal. Este tipo de horror é quase a própria vida, a cada instante, estamos bem, estamos mal no instante a seguir. Parece que o livro indirectamente nos tenta acordar desta apatia… mas como disse, cada pessoa criará os seus próprios significados, este é meu.
Não sou, nem de perto, um bom conhecedor deste género, mas um detalhe que me agradou tem a ver com o facto de este autor não centrar o horror nas horas onde não existe luz. Em outros livros ou filmes, muitas vezes me desagrada o facto de quando chega a noite saber que algo vai acontecer. Aqui tal não acontece, porque não existe hora específica para o horror, tal como na vida real. Mas como disse, não sou um conhecedor do género, como tal admito que existirão certamente outros livros que tenham esta particularidade, eu apenas não os conheço.
Este é um livro para pessoas que apreciem descrições fortes, repugnantes, que existem no nosso mundo a cada segundo. Nós apenas temos a sorte de não as ver, ou decidimos não ver. Pessoalmente apreciei, pela sua qualidade, pelo que tenta transmitir. Não gostei tanto deste livro como de Batalha (são géneros diferentes com escrita distinta), mas é a confirmação de que David Soares é um autor para seguir. Irei certamente ler outros livros da sua autoria e quem sabe, talvez um me agrade ainda mais do que a história da ratazana chamada Batalha.
Gostei do comentário, embora também não seja um género com o qual esteja muito familiarizada!
ResponderEliminarÉ a 2ª opinião tua que leio sobre David Soares e parece-me que vai ser uma das minhas próximas aquisições (ainda não me decidi se Batalha, A Luz Miserável ou É De Noite Que Faço As Perguntas)! Percebo o que dizes quanto ao uso da noite enquanto ambiente para decorrer a acção mas é compreensível que assim seja pela visualização mental da cena ajudando a criar um ambiente mais sombrio! Para mim, a diferença entre usar bem ou mal a noite é feita pelos próprios autores...um dos livros em que gostei bastante do ambiente nocturno de tudo é Sonho Febril do GRRM! É muito bom e está de tal forma bem descrito que enquanto o lia só pensava "Isto daria um filme fantástico!" exactamente pelo uso da noite para criar um ambiente mais sombrio!
ResponderEliminaroffuscatio, obrigado pelo teu elogio e comentário!
ResponderEliminarsabicho, tudo bem? Eu certamente irei ler nos próximos tempos o Evangelho do Enforcado. Achei o tema interessante. Também percebo o que dizes sobre a luz. Nunca li o Sonho Febril do GRRM mas ouvi dizer que é bom. Ficará para ler um dia pois as opiniões são boas e a qualidade da sua outra saga é mais que suficiente para ler as restantes obras.
Li este ano há pouco tempo. Apreciei-o e tornei-me fã deste autor. Todavia digo-lhe que a sua crítica revela pormenores sobre esta obra que me tinham escapado, talvez por apatia da minha parte. Este é um texto ao nível do livro que comenta. Dou-lhe os meus parabéns. Continue a ler David Soares pois vale a pena.
ResponderEliminarEstou convencido. vou comprar!
ResponderEliminarNunca li nada deste autor mas li esta opinião e talvez compre este e o Batalha. Fiquei interessada apesar de não ser o meu género.
ResponderEliminarVou comprar. depois digo-lhe o que achei.
ResponderEliminarObrigado por divulgares mais um livro que não conhecia. Achei o tema interessante apesar de não ser fã de livros de contos.
ResponderEliminarUm autor que comecei a seguir atentamente após ter lido "Os Ossos do Arco-Íris". Depois também li este que referes e "O Evangelho do Enforcado". Agora aguarda na estante "A Conspiração dos Antepassados" e fiquei com muito boa impressão da obra "É De Noite Que Faço As Perguntas", que esteve em foco no festival de BD da Amadora de 2010.
ResponderEliminarOlá tonsdeazul.
ResponderEliminarTambém fiquei curioso com a obra "É de noite que faço as perguntas" e planeio nos próximos tempos ler o Evangelho e a Conspiração. Gostaste do Evangelho do Enforcado?
Gostei bastante, Luís! Tem descrições muito fortes e chegam a ser repugnantes, mas a história está muito bem escrita e os personagens bem delineados. Para além de se passar na Idade Média (época que me agrada em particular), tem dois estilos que gosto imenso: o fantástico e o histórico.
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