sábado, 31 de dezembro de 2016

SILÊNCIO


Hoje apresento mais uma opinião da leitora Margarida Contreiras que por várias me enviou excelentes opiniões a livros que não tive oportunidade de ler. Obrigado à Margarida por mais este excelente texto!



Autor: Shusaku Endo


Sinopse: Silêncio, cuja acção decorre no século XVII, conta-nos a história de um missionário português envolvido na aventura espiritual da conversão dos povos orientais, o qual acaba por apostatar, após ter sido sujeito às mais abomináveis pressões das autoridades japonesas, para evitar que um grupo de fiéis seja por ordem delas torturado até à morte. 
Antes de chegar ao Japão, a sua viagem leva-o a Goa, depois a Macau e, finalmente, a Nagasáqui e Edo, em etapas que pouco a pouco o transportam a esse Oriente hostil, onde no entanto já se contam alguns milhares de convertidos à fé católica. 
Aí descobre, na luta contra as pessoas e o ambiente adversos, a verdadeira fé, liberta de todo o aparato externo, eclesiástico ou mundano. E aí acaba por experimentar a derradeira solidão, que é o destino daqueles que quebram a comunhão com o que mais profundamente marca a sua identidade.



Aqui conta-se a história de dois jesuítas portugueses que se aventuraram numa desditosa odisseia ao Japão seiscentista. Um deles é o padre Sebastião Rodrigues, que embarcou em busca de cristãos oprimidos para reaproximá-los da imagem de Cristo e dar-lhes algum conforto espiritual. Estamos então na época de um imperador japonês que invertera a política do seu antecessor através da abolição absoluta da religião cristã. Os cristãos japoneses, forçados à apostasia, viviam apavorados com a ideia de serem apanhados na ritualística e torturados caso recusassem blasfemar a Virgem Maria ou pisar os famosos fumies - imagens de Cristo fabricadas com o propósito de serem pisadas pelos apóstatas. 

O livro começa com um prólogo em que o autor nos fala na primeira pessoa  e nos revela a sua própria questão existencial e a sua inquietação espiritual, cuja leitura é essencial a quem procura compreender que profundidade atinge esta história. Com efeito, um dos fatores mais interessantes deste livro é a nacionalidade japonesa do seu autor que nos traz uma novidade no âmbito da ficção histórica existente acerca da Era dos Descobrimentos portugueses: a colisão intercultural vista pelos olhos do povo de além-mar. 

Seguidamente, surge uma compilação de cartas que Sebastião envia para Roma contando as peripécias da sua viagem. Esta é uma forma bastante apelativa de estruturar a narração, já que aproxima o leitor do acontecimento, permitindo-lhe um contacto direto e mais real com a personagem principal criando, ao mesmo tempo, um ambiente de suspense mais elevado, já que o próprio remetente se mostra expectante e receoso no final de cada carta.

Numa terceira e última parte, o discurso passa para o narrador, que apenas sabe o que está na cabeça de Sebastião e nos conta tudo através dos seus olhos. E assim rezamos com este jesuíta, vemos e revemos a sua própria imagem de Cristo, e buscamos com ele o sinal divino da salvação das almas torturadas. Inclusivamente, vivemos com ele o tédio do cárcere, desesperando com ele, mas sem nos entediarmos. Até que, finalmente, com ele respondemos também à mais dramática interrogação deste livro: apostasia ou martírio?

Shusaku Endo encarna nesta história a necessidade intemporal do Homem em recriar a imagem de Deus à sua própria imagem de humano, estando, afinal, a reproduzir um Deus que criou o homem à sua imagem e semelhança. É assim que o padre jesuíta constantemente procura conforto na expressão mais concreta do intangível - a vida de Cristo -, inspirando-se no seu rosto e na sua carne talhada para dar justificação e persistência ao seu sofrimento e tentar redimir Deus pela sua característica menos humana: a omnipresença invisível.

Um dos momentos mais interessantes do livro não é especificamente nenhum episódio da narrativa, mas o momento em que o leitor compreende na totalidade o título do livro, apercebendo-se de que o objetivo desta história é mostrar a dilaceração do coração de um homem que aspira seguir os passos de Cristo, acreditando que é esse o caminho para a salvação de todas as almas, incluindo a sua, e que Deus responde às suas preces desesperadas com um longo, doloroso e cerrado silêncio.

Não há muitos diálogos, até porque há muitos momentos de solidão, contudo, os poucos que lemos são bem estruturados e conseguem terrificar-nos ao constatarmos o poder manipulador da psicologia humana e os seus efeitos nefastos. O cenário compõe-se com poucas personagens, algumas representando claramente a fidelidade a Cristo e a devoção como força motriz da sua vida, enquanto outras representam a soberania japonesa de origens místicas bem diferentes. No meio, encontramos a figuração da cobardia em Kichijiro, da entrega à fé nos martirizados e a coragem nos que por entre eles se aventuram. Contudo, esta não é uma batalha entre o Bem e o Mal. É antes mais uma justificação para a necessidade da História em compor-se de grupos unânimes e a importância da religião para essa homogeneidade. Este livro não é um apelo, mas antes o testemunho de um recôndito subcapítulo do pós-epopeia dos Descobrimentos na sua versão missionária.

A dúvida instala-se implicitamente e vivemos o questionar de um sacerdote para com o seu próprio deus, sentindo-se abandonado por ele enquanto assiste à morte e à flagelação em seu nome. Chegamos, por fim, a um debate de sentimentos e ações sobre qual será o melhor sacrifício e qual a melhor maneira de servir um deus silencioso. Apercebemo-nos de que a fé está em cada um de nós de maneira diferente e, sobretudo, que ela é transparente e vive calada.




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